Blog de frestras. Não é diário íntimo. Para jogar as imperfeições no circo, desentupir excessos, fazer uma calçada.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Maus hábitos II

Catar pulga em cachorro.
Arrancar cravos.
Arrancar pêlos com pinça.
Tirar farpas.
Assassinar bicho de pé no nordeste.

Toda vez que faço isso parece que ficam menos coisas pra resolver amanhã. Gosto.

quinta-feira, outubro 27, 2005

Plim. III

Dentro-dentro do vento as cintilâncias têm cores inalcançáveis. Que mudam a cada quebrada.
Depois de rodar a catraca e matar os senãos já era.
Não pode o sujeito ter medo de ser atacado pelas mágicas miragens de poder do cotidiano. São perpétuas.

Plim. I

Puxou a alavanca da vontade, acabou-se.
Se esforçou em assassinar os senãos, e aquele Deus ajuda a quem cedo continua.
Ou será Shiva, que simpatiza com quem sabe dançar?
Deu uma volta em torno do ônibus, ele vem-ele vai, mas dessa vez ele vai esperar. Tudo tudo veio para a festa e ninguém sabe, que não tem música. Mas tem encontro, coincidências e detalhes, coisa que poucos perceberão, os que continuarão bebendo com ela. Rodou a catraca.

Plim II

...o cachorro raivoso passa com seu focinho quente, e no máximo vai lhe cheirar. Será tudo fácil, nada simples. Os canos se entortarão para compreender a força da água certa.
A lua será mais branca quanto mais cristalina a inocência demandar.
O tempo será todo, o tempo todo, todo o tempo de tudo.
Bichos escrotos serão vistos de frente, e não assustarão mais.
Pelas costas só pastarão gados esclarecidos. Pela cara, transparência, até as memórias de povos ancestrais. Será vento, de todos os grados, pra cada momento.

Será água no calor, será raio para secar.
Será farpa quando a maciez da preguiça nos engordar.
Será vago quando as varas nos afiarem em excesso.
Será dedos quando o vento engruvinhar o cabelo.
Será ela e você quando o mundo for demais.
Será mundo quando deixarem vaidades para trás.
Será ar quando o otimismo criar mofo
Mas não será óbvio, exato por se tratar de vento.

terça-feira, outubro 18, 2005

Momento de glória I

Ainda faltava muito para a partida do ônibus, mas o relógio do meu peito já corria ponteiros em disparadas. Era a fantasia de que o tempo tinha asas, já que voa, que me dava pânico dele chegar à rodoviária antes de meus tênis azuis, acho que era isso que me fazia começar a me arrumar hora antes da nossa grande viagem. Era sempre assim.

Costumava abrir um sabonete para um banho que sempre achava que dividiria águas: antes e depois daquelas férias sempre tão importantes, sempre definitivas. Me sentia mais limpa que nunca, acreditava no frescor daquele momento. Abrir um sabonete novo devia ajudar, achava.
Da cozinha se ouvia o tremido do liquidificador da pesada vitamina de Zefa. Meio litro de frutas com leite forte que só se podia comer com colher, de tão grossa: “leve e sustante, para não enjoar”, sorria a nossa gorda com seus dentes branquíssimos chocando-se com a pele preta de sua Bahia. Nunca soube se era uma piada. Eu sempre enjoava. E Zefa sorria, era quase a própria vaca. Minha mãe não sabia, mas eu juntara dinheiro para comprar uma calcinha nova para aquele dia. De novo. Tinha essa mania. Na última semana de aula não comia, só para ter o prazer de arrancar a etiqueta do preço e ficar mastigando a cordinha de plástico, “uma nojeira”, ralhava mamãe quando me flagrava pela enésima vez com a boca molhada. Logo logo estaríamos na rodoviária da cidade, a parte que mais me emocionava as pernas.

A quentura da pressa dos imigrantes não deixava meu pensamento vaguear um só minuto. Adorava imaginar para onde iam tantas lonas, tantos couros e plásticos e xitas carregando tanto...para onde, meu deus? O que tanto avolumavam aquelas vidas, umas se desfazendo, outras se libertando cheias de esperanças, cheias de crianças penduradas nos dedos que sobravam de seus pertences misteriosos? Como eu queria ser uma formiguinha para passear por aquelas malas! De vez em quando era eu que me sentia puxada pelos dedos suados que sobravam de mamãe. Tudo suava naquela rodoviária. E quando o calor era demasiado, inventava que queria ver “um negócio ali”, só para encostar a barriga no balcão de vidro gelado das coalhadas e pudins do Nemias, o único lugar em que as coalhadas eram em neve. Acordava com o sotaque carregado do alto falante ameaçando que nosso ônibus para A outra capital partiria em 10 minutos, o tempo ideal para termos que esbarrar em todos e descer a rampa correndo, o desafio da década. E quando sentávamos as duas, eu e mamãe, pingando o ano nas poltronas de couro quente do ônibus, ela sempre parecia que tinha acabado de ter um filho de parto normal. Me inclinava a cabeça assim preguiçosa e me sorria de lado como quem dissesse “somos mais espertas que eles”. E eu ficava toda boba, achando que éramos, eu e minha mãe, uma dupla perfeita. Ali o tempo parava. E eu queria que começasse tudo de novo. Mas só no ano que vinha.

segunda-feira, outubro 17, 2005

SRD´s love

Querida Sophie,
Sei que te escrevo mais para registrar em um documento uma possibilidade de amor improvável do que propriamente prá te deixar uma mensagem clara, algo que você vá compreender de fato. Gostaria mesmo é que um dia meus filhos lessem essa carta e entendessem um das poucas coisas que acabei descobrindo nestes tempos turbulentos: que não há “amor entre iguais”, nem “amor entre diferentes”. Há só o amor.

Sei que, mesmo sem ler, ninguém entenderá melhor do que você a minha necessidade de partir. E escrever é só mais uma formalidade entre as tantas que venho tendo que cumprir - não imaginava que essa decisão envolvia tantas providências além de bater poeticamente uma porta e pegar a estrada.

Pedirás mais e caberá a mim te fazer compreender de outra maneira o que vai aqui nesse papel. Sempre foi assim. Sempre falei, falei, falei e, ao fim, sempre tive que dizer tudo de novo de outra forma, te colocando no colo e te acariciando a barriga, te olhando no olho pra te mostrar quando você errava, te chamando com o corpo: “vem”, vamos passear...

Me lembrei agora da primeira vez que você entrou lá em casa, pela cozinha. Por um momento achei que mais uma vez teríamos um hóspede que nos divertiria, como foi com Henrique, Miguel e Helena em tempos mais solidários. Você nos esperaria chegar, eu primeiro, e logo mais, Marcel, para se exibir e nos entreter até que o cansaço e a cabeça vaga, depois do jantar, nos fizesse esquecer o tédio contratado em comunhão de bens que vinha sendo a nossa parceria nestes últimos 7 anos. E, a verdade é que você nunca nos entretinha de realmente. Nos olhava a noite inteira com aquelas agulhas exigentes. E eu, estremecida, só queria te dizer que não, que eu nunca poderia ignorar que quem sofreu como você sofreu..., acho que tinha medo. Eu sabia que um passado assim não pode entreter um casal natimorto. Nem o presente tava dando conta. Você tinha razão em ser exigente. Tentei te dizer isso de muitas formas e sei que você sabe que eu reconhecia teu esforço de amar-nos os dois incondicionalmente, mesmo que fôssemos aquele casal natimorto.

Quando você sofreu aquele acidente na rua de Carlos senti muita culpa, sei que estava no lugar errado, na hora errada, e ainda ter te levado lá comigo... sei que fui infantil. Mas um passeio inocente contigo, ninguém desconfiaria... Ali senti pela primeira vez que seríamos amigas pra sempre, e que Marcel nunca entenderia um amor assim, mas que nossos filhos sim, eles entenderiam perfeitamente nosso amor. Tuas pernas ficaram bambas, eu ali congelada e aquele carro nunca parou...que covardia! Mas você resistia bravamente, incrível, quieta, como se evocando outra dor, aquela primeira do teu abandono no centro de adoção. E que dessa dor você retirasse um alento: já foi pior. E ainda que o sangue que escorria do teu pescoço dissesse da urgência de te cuidar, te medicar, e tudo mais, era ainda mais urgente pra mim cuidar do teu pânico em ser abandonada naquela rua. Mais uma vez. Ali sentí que precisava estar contigo para sempre – pelo menos dar-te essa impressão.

E hoje, nessa carta que só meus filhos entenderão, e que te contarei acariciando os pêlos, preciso que você perceba que não é mais necessário dar-te a impressão de que te amo como nunca amei um ser assim. Preciso é que você acredite. Nesse momento, acho que só amo você. Não me importo com o fato de você não ser homem, nem mulher, apenas um cãozinho, um acompanhante de vidas vis como as nossas. Para falar a verdade, acho que é por isso mesmo
Por fim nossas vidas vão para onde devem ir, Sophia, vão ser sós. E, com todo o caos, só consigo pensar em você. Você é o único ser nessa história que não pode ser só.... preciso encontrar um jeito. Porque posso não saber escrever e você não poder ler, mas você me ensinou como deixar uma carta abandonada, mas um amor não.