SRD´s love
Querida Sophie,
Sei que te escrevo mais para registrar em um documento uma possibilidade de amor improvável do que propriamente prá te deixar uma mensagem clara, algo que você vá compreender de fato. Gostaria mesmo é que um dia meus filhos lessem essa carta e entendessem um das poucas coisas que acabei descobrindo nestes tempos turbulentos: que não há “amor entre iguais”, nem “amor entre diferentes”. Há só o amor.
Sei que, mesmo sem ler, ninguém entenderá melhor do que você a minha necessidade de partir. E escrever é só mais uma formalidade entre as tantas que venho tendo que cumprir - não imaginava que essa decisão envolvia tantas providências além de bater poeticamente uma porta e pegar a estrada.
Pedirás mais e caberá a mim te fazer compreender de outra maneira o que vai aqui nesse papel. Sempre foi assim. Sempre falei, falei, falei e, ao fim, sempre tive que dizer tudo de novo de outra forma, te colocando no colo e te acariciando a barriga, te olhando no olho pra te mostrar quando você errava, te chamando com o corpo: “vem”, vamos passear...
Me lembrei agora da primeira vez que você entrou lá em casa, pela cozinha. Por um momento achei que mais uma vez teríamos um hóspede que nos divertiria, como foi com Henrique, Miguel e Helena em tempos mais solidários. Você nos esperaria chegar, eu primeiro, e logo mais, Marcel, para se exibir e nos entreter até que o cansaço e a cabeça vaga, depois do jantar, nos fizesse esquecer o tédio contratado em comunhão de bens que vinha sendo a nossa parceria nestes últimos 7 anos. E, a verdade é que você nunca nos entretinha de realmente. Nos olhava a noite inteira com aquelas agulhas exigentes. E eu, estremecida, só queria te dizer que não, que eu nunca poderia ignorar que quem sofreu como você sofreu..., acho que tinha medo. Eu sabia que um passado assim não pode entreter um casal natimorto. Nem o presente tava dando conta. Você tinha razão em ser exigente. Tentei te dizer isso de muitas formas e sei que você sabe que eu reconhecia teu esforço de amar-nos os dois incondicionalmente, mesmo que fôssemos aquele casal natimorto.
Quando você sofreu aquele acidente na rua de Carlos senti muita culpa, sei que estava no lugar errado, na hora errada, e ainda ter te levado lá comigo... sei que fui infantil. Mas um passeio inocente contigo, ninguém desconfiaria... Ali senti pela primeira vez que seríamos amigas pra sempre, e que Marcel nunca entenderia um amor assim, mas que nossos filhos sim, eles entenderiam perfeitamente nosso amor. Tuas pernas ficaram bambas, eu ali congelada e aquele carro nunca parou...que covardia! Mas você resistia bravamente, incrível, quieta, como se evocando outra dor, aquela primeira do teu abandono no centro de adoção. E que dessa dor você retirasse um alento: já foi pior. E ainda que o sangue que escorria do teu pescoço dissesse da urgência de te cuidar, te medicar, e tudo mais, era ainda mais urgente pra mim cuidar do teu pânico em ser abandonada naquela rua. Mais uma vez. Ali sentí que precisava estar contigo para sempre – pelo menos dar-te essa impressão.
E hoje, nessa carta que só meus filhos entenderão, e que te contarei acariciando os pêlos, preciso que você perceba que não é mais necessário dar-te a impressão de que te amo como nunca amei um ser assim. Preciso é que você acredite. Nesse momento, acho que só amo você. Não me importo com o fato de você não ser homem, nem mulher, apenas um cãozinho, um acompanhante de vidas vis como as nossas. Para falar a verdade, acho que é por isso mesmo
Por fim nossas vidas vão para onde devem ir, Sophia, vão ser sós. E, com todo o caos, só consigo pensar em você. Você é o único ser nessa história que não pode ser só.... preciso encontrar um jeito. Porque posso não saber escrever e você não poder ler, mas você me ensinou como deixar uma carta abandonada, mas um amor não.
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