Momento de glória I
Ainda faltava muito para a partida do ônibus, mas o relógio do meu peito já corria ponteiros em disparadas. Era a fantasia de que o tempo tinha asas, já que voa, que me dava pânico dele chegar à rodoviária antes de meus tênis azuis, acho que era isso que me fazia começar a me arrumar hora antes da nossa grande viagem. Era sempre assim.
Costumava abrir um sabonete para um banho que sempre achava que dividiria águas: antes e depois daquelas férias sempre tão importantes, sempre definitivas. Me sentia mais limpa que nunca, acreditava no frescor daquele momento. Abrir um sabonete novo devia ajudar, achava.
Da cozinha se ouvia o tremido do liquidificador da pesada vitamina de Zefa. Meio litro de frutas com leite forte que só se podia comer com colher, de tão grossa: “leve e sustante, para não enjoar”, sorria a nossa gorda com seus dentes branquíssimos chocando-se com a pele preta de sua Bahia. Nunca soube se era uma piada. Eu sempre enjoava. E Zefa sorria, era quase a própria vaca. Minha mãe não sabia, mas eu juntara dinheiro para comprar uma calcinha nova para aquele dia. De novo. Tinha essa mania. Na última semana de aula não comia, só para ter o prazer de arrancar a etiqueta do preço e ficar mastigando a cordinha de plástico, “uma nojeira”, ralhava mamãe quando me flagrava pela enésima vez com a boca molhada. Logo logo estaríamos na rodoviária da cidade, a parte que mais me emocionava as pernas.
A quentura da pressa dos imigrantes não deixava meu pensamento vaguear um só minuto. Adorava imaginar para onde iam tantas lonas, tantos couros e plásticos e xitas carregando tanto...para onde, meu deus? O que tanto avolumavam aquelas vidas, umas se desfazendo, outras se libertando cheias de esperanças, cheias de crianças penduradas nos dedos que sobravam de seus pertences misteriosos? Como eu queria ser uma formiguinha para passear por aquelas malas! De vez em quando era eu que me sentia puxada pelos dedos suados que sobravam de mamãe. Tudo suava naquela rodoviária. E quando o calor era demasiado, inventava que queria ver “um negócio ali”, só para encostar a barriga no balcão de vidro gelado das coalhadas e pudins do Nemias, o único lugar em que as coalhadas eram em neve. Acordava com o sotaque carregado do alto falante ameaçando que nosso ônibus para A outra capital partiria em 10 minutos, o tempo ideal para termos que esbarrar em todos e descer a rampa correndo, o desafio da década. E quando sentávamos as duas, eu e mamãe, pingando o ano nas poltronas de couro quente do ônibus, ela sempre parecia que tinha acabado de ter um filho de parto normal. Me inclinava a cabeça assim preguiçosa e me sorria de lado como quem dissesse “somos mais espertas que eles”. E eu ficava toda boba, achando que éramos, eu e minha mãe, uma dupla perfeita. Ali o tempo parava. E eu queria que começasse tudo de novo. Mas só no ano que vinha.
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