Armação
Dizem que a pior coisa que pode haver para o ser humano é viver sem perspectivas. Certo. Concordo que acordar sabendo que teu dia hoje será como ontem, e que se por ventura a ontem não se assemelhar será porque mimeticamente estará como ante-ontem, ou como algum daqueles dias da semana passada...concordo que viver assim deve ser foda. Ou, mais foda: a falta de perspectiva se dar pelo fato de que nada que imite qualquer dia passado te interesse ou te crie expectativas-frisson porque ontem, ante-ontem ou semana passada, nada disso tem relevância, nada disso foi realmente insitigante... hum, mais foda ainda. Mas tenho a impressão de que pouca gente vive assim hoje em dia. Pouquíssima. Não porque poucos tenham passados relevantes, ou minimamente interessantes a ponto de a idéia de repetir algumas coisitas não vir a calhar, pelo menos de vez em quando... mas porque hoje as coisas todas são tantas coisas, e tudo tão “relativo”, e tudo tão “possível”, acessível, customizado, perspectivado, que o estresse matutino aquela angustiazinha que cola nossas costas um pouco mais no colchão, tem mais a ver com a pressão ou ilusão de que temos “o mundo ao nosso redor”, “a vida pela frente”, “a faca e o quejio nas mãos”, tudo tudo tão ao gosto do freguês que... nossa. Isso me estressa muito.
É óbvio que me sinto a mais mané quando não consigo simplesmente escolher entre uma das promoções de uma loja de fast food qualquer, e quando abro uma revista de programação cultural semanal, marco um monte de coisas e quando recebo a revista da semana seguinte ... putz, me dou conta de que não fiz absolutamente nada do que tinha me proposto na semana anterior! E por de vez em quando as carreiras públicas de alguns “modestos” escritores do século XIX me soarem tão excitantes... mas tenho que confessar que ouvir de Win Wenders na Janela da Alma, aquele filmão, que ele gosta de óculos, não é porque precise da lente, que não a trocaria por uma de contato, mas porque ele precisa da armação, do enquadramento, da restrição... Sensacional. Ouvir isso de Win Wenders me deu assim, digamos, um afago na alma. Talvez a perspectiva de vida contemporânea mais promissora que tenha ouvido nos últimos tempos. Inegavelmente a mais apaziguadora.
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