A gota mais empolgada do oceano
Quando aprendi a ler tive uma sensação muito forte de que nunca estaria sozinha, nem entediada. Senti muito poder na época. Se tivessem me dado uma espada, teria me tornado automaticamente uma tirana mirim, sem saber por onde extravasar aquela energia da descoberta, do poder, a certeza de que ganharia o mundo inteiro naquele mesmo instante. Talvez tivesse furado a barriga de alguém que gostasse muito, como um cachorro que ama muito a gente chegando de uma longa viagem, e por isso morde nosso calcanhar. Depois, muitos muitos anos mais tarde, quando nas trevas de uma inflamação no cotovelo uma amiga mirim me ensinou que doía menos quando a gente vivia a dor somente do dia, nunca pensando que aquilo podia durar pra sempre, fui lá ver, e olha... doeu menos, muito menos. Então foi ai que minhas dores com origem no coração passaram a sofrer pequenas lavagens cerebrais, para aos poucos se adaptarem ao método dos que sofrem anônimos: só por hoje.
Pois isso de pensar na dor do dia me fez querer experimentar-me uma pegadinha, que era se sentindo a alegria do dia então o efeito podia ser o contrário: muito mais alegria por não pensar que amanhã ela podia ser menor. Sem lembrar que ontem também não tinha sido capaz de ser tão felizarda, e que, portanto, ela tinha mesmo que ser retida AGORA. Hum?
Tcham. Tcham. Tcham. Nossa, não é possível, é: deu certo. A alegria do minuto é mais intensa quando a gente não perde nem um segundo dela tentando adivinhar como ela vai estar depois do almoço: mais apagada, menos colorida, mais baixinha e nariguda. Nada. Se ela só existiria agora, então, teria que ser presenciada completamente... agora. Muito bom. Gostei muito mesmo disso.
Ai me veio aquela ambiçãozinha capitalista de fazer a mesma coisa com cada bom momento. Alegria, prazer, qualquer boa sensação: será que dava certo fechar os olhos laterais e congelaresse bem estar no presente momento em que ele derrete? Mesmo com tudo que acontece em volta e dentro da vida, dava prá fechar os olhos do medo, do futuro, do capitalismo, dos traumas, do passado e da gente chata que não deixa a gente brincar de ser feliz e não perder nem um segundinho, nem uma purpurina de centésimo desse prazer? Será que dava?
Tarátatá-catimplum! Ai.
A primeira vez que deu foi um troço muito forte pro meu coração, ele ficou tão desorientado e grande que se constrangeu: procurou os cotovelos, as dores, o chefe do futuro, o cachorro que a gente ama e que um dia morre, mas nada. Dava certo. E ai veio, de novo, aquele impulso de ganhar o mundo.
Sem a espada, e mais politicamente correta, não tive aquela vontade desastradada de atacar ninguém com minha euforiazinha canina. Ai acho que já era adulta, né? E no entanto, até agora ainda não sei descrever com maturidade aquela sensação de ser tudo feliz só por agora, só sei que foi muito parecida com a de quando aprendi a ler.
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